domingo, 1 de agosto de 2010

O começo

Antes mesmo do final do último ano letivo todos os meus colegas de turma se apressavam em procurar boas propostas de emprego, concursos, testes seletivos para residência e mestrado... menos eu. Eu tinha conseguido uma bolsa de Iniciação Científica que só terminava dali uns quatro meses e, o acordo com a minha orientadora era que mesmo me formando eu não desistiria da bolsa antes do final do contrato. O jeito era terminar uma coisa pra começar outra, sem pressa. Mas uma certeza eu tinha, meu futuro não era dentro de um hospital. Cumpri com todas as minhas obrigações discentes, mas não posso dizer que tinha prazer em circular nos corredores do HC, principalmente nas enfermarias. Eu saía de lá como se tivesse carregado uns 100 kg nas costas durante todo o plantão. A única vez que eu entrei em um hospital psiquiátrico foi um desastre! Nesse dia eu verbalizei que desistiria do curso, se não fosse a sensibilidade da profa. Márcia, talvez este blog tivesse um outro tema, não sei se eu chegaria a me formar. Ela compreendeu minha angústia e prontamente me trocou de campo de estágio. Em um Naps eu consegui descobrir que eu podia até gostar de psiquiatria.
Mas, voltando ao tema principal, no início do ano seguinte, estava eu olhando o mural da Escola quando vejo uma proposta de emprego em uma pequena cidade do interior de Minas, pra trabalhar em uma Equipe de Saúde da Família. O salário não era nem razoável, mas daria pra sobreviver. Sempre pensei que quem precisa de experiência não pode se dar ao luxo de escolher muito, a experiência é que vai ser um diferencial no futuro. Pois bem, apesar de faltar mais de um mês pra terminar o contrato da IC, achei que eu não perderia nada em fazer um primeiro contato.
Ao ligar, a secretária de saúde me convidou pra conhecer a cidade e levar um currículo. No dia marcado, peguei um ônibus de Ribeirão Preto a Uberlândia e de Uberlândia pra lá. Cidade bonitinha. Diferente daquelas ruas cheias de ladeiras do sul de Minas, as avenidas eram largas e planas, tinha um ar de cidade nova, mas o jeito do povo dava aquela cara de interior. Uma coisa era igual a qualquer cidade do interior de Minas... parecia que tudo lá passava devagar. Gostei!
Ao conversar com a secretária, ela me contou que já tinha uma colega minha trabalhando lá, que a proposta era que eu fosse trabalhar em uma equipe de zona rural. Expliquei a ela que eu ainda tinha que cumprir mais um mês de contrato da IC. Ela disse que tudo bem. Disse-lhe que o salário era um pouco baixo pra quem precisava mobiliar uma casa, pagar aluguel, afinal eu não ia morar com pai e mãe, tinha que me virar sozinha. Ela disse que poderia me oferecer um "alojamento". Já diz o ditado: quando a esmola é demais... Mas eu preferi não desconfiar. Queria muito começar e, no dia marcado, compromissos em Ribeirão Preto encerrados, hora de voar com as minhas próprias asas!
Ao chegar lá descobri que o meu "alojamento" era dentro do pronto-socorro. Havia uma estrutura física construída para abrigar um hospital público, a secretaria de saúde e vários ambulatórios. A construção atravessava um quarteirão de um lado a outro, havia espaço para centro cirúrgico, centro obstétrico... só não havia quem trbalhasse lá. Dos quatro descansos médicos, só um era ocupado pelo plantonista do pronto-socorro que, diga-se de passagem, só atendia pequenas urgências e deixava alguns "gatos pingados" em observação por até 24h. De lá, ou voltava pra casa ou era encaminhado para Uberlândia.
Meu novo lar era um dos desncansos médicos desocupados. É claro que além daquelas vantagens já esperadas (não ter que pagar aluguel, luz, telefone...) encontrei outras vantagens em morar lá: eu não precisava ter medo de ficar sozinha pois tinha sempre um PM fazendo a segurança da porta da minha casa; também não precisava me preocupar se eu me sentisse mal subitamente pois a equipe de saúde estava disponível 24 horas. Ah! eu também nunca perdi a hora pois a janela do meu quarto dava para o muro de uma escola e, às 5 horas da manhã as faxineiras começavam a arrastar as cadeiras, cantavam, conversavam e ligavam o rádio pra animar a arrumação das salas de aula, mas se nada disso me acordasse, às 7 horas tocava aquela sirene maldita! Como eu trabalhava na zona rural, um carro da prefeitura nos levava até nossos destinos (cada dia da semana era um lugar diferente), e adivinha onde o carro ficava guardado? Isso mesmo! Na garagem do pronto-socorro. Quer coisa melhor? Era impossível o motorista esquecer de passar na minha casa pra me buscar! O café da manhã eu tomava na padaria quando passava lá pra pegar o almoço (pão com mortadela, suco Del Vale e iogurte) e já ficava na conta da prefeitura - uma despesa a menos. Melhor que isso só se o carro tivesse ar-condicionado, mas aí já era pedir demais. O carro era um Fiat Ipanema que já estava aposentado das rodovias federais (mas pelas contas da secretária de sáude ainda servia pra andar nas estradas municipais, leia-se: estrada de terra, esburacada na seca e enlameada na chuva). Os pneus da Ipanema eram trocados quando alguma ambulância era multada na rodovia federal por estar com os pneus carecas (colocavam pneus novos na ambulância e os velhos...) Nem precisa contar que pelo menos uma vez por semana a gente ficava com um ou dois pneus furados. Em um tempo em que celular era luxo, quase ninguém tinha (e, quando tinha não tinha sinal) o jeito era esperar passar um leiteiro ou algum fazendeiro que nos visse e avisasse para pessoal da secretaria mandar alguém pra dar socorro. Enquanto isso, o médico, o auxiliar de enfermagem, o motorista e eu comíamos os pães com mortadela e jogávamos caixeta (o carro podia não ter estepe, mas o baralho não saía do porta-luvas).
Pra alguns isso pode soar logo de cara como um filme de terror, mas pra mim não. Eu não fui para lá iludida, talvez por vir de um pequeno munícipio do interior, talvez pelas discussões sobre processo de trabalho na universidade, eu não sonhava com as condições de trabalho perfeitas. O que eu queria era conhecer o mundo, sair da redoma acadêmica da USP. Inicialmente eu não achava ruim, até me divertia. Conheci a graditão do povo simples, a criatividade do profissional que trabalha nesse mundo de improvisos, mas chega uma hora que cansa trabalhar assim. Você vê que não consegue fazer mínimo porque falta o mínimo. O mínimo de respeito com o trabalhador, o mínimo de respeito com o cidadão que merece um atendimento decente. A gente só trabalhava no paleativo, prevenção era sinônimo de campanha de vacinação... E, três meses foram o suficiente pra eu me arriscar a buscar um lugar melhor. Apesar de tudo, essas recordações me vem com uma ponta de saudade.